Há alguns anos, pesquisas internacionais estão ressaltando a importância do olhar para a saúde mental dos médicos-veterinários. Inicialmente, trabalhos realizados no Reino Unido e nos Estados Unidos (MERCK ANIMAL HEALTH, 2020; MOFFETT, BARTRAM, 2017; SMITH, 2020) investigaram taxas de síndrome de burnout, fadiga por compaixão e ideação suicida entre esses profissionais. As taxas encontradas nos resultados chamaram atenção e, a partir daí, muitas pesquisas ao redor do mundo começaram a investigar a saúde mental desses profissionais. Contudo, no Brasil, o tema continua escasso.
Diante disso, sabendo que a saúde mental ainda é acompanhada de muitas dúvidas, tabus e preconceitos, ressaltamos a necessidade de expor e discutir o tema com a seriedade que ele merece, incluindo pensar sobre a saúde mental no contexto laboral, a fim de chamar a atenção da população para temática, proporcionar autocuidado e aumentar a conscientização.
Nesse intuito, a Ekôa Vet – Associação Brasileira em Prol da Saúde Mental na Medicina Veterinária foi fundada em 2021, por psicólogos e médicos veterinários que uniram esforços para promover conscientização, oferecer acolhimento e propagar informações confiáveis sobre saúde mental dos estudantes e profissionais da área médico-veterinária brasileira. Para saber melhor sobre seus membros, eles estão apresentados na página do Instagram @ekoavet.
Respeito, empatia, compromisso, acolhimento e seriedade são valores que a Ekôa Vet preza para desenvolver uma rede de apoio e fornecer direcionamentos, sempre de forma a informar e acolher, com o intuito de influenciar positivamente a vida dos profissionais da Medicina Veterinária. Por meio de seus canais de comunicação, inclusive um site que se encontra em construção, são abordados temas de grande relevância para o público, como síndrome de burnout, comunicação de más notícias, processo de luto, rotina de autocuidado, qualidade de vida e saúde mental.
Quem cuida precisa se cuidar
Nas profissões de alta assistência, nas quais empatia, compaixão e cuidado com os outros estão no centro da prática, não é incomum encontrarmos falta de informação e de preparo, o que impacta em casos de burnout, fadiga por compaixão, esgotamento emocional e ideação suicida. Muitas vezes, tais casos estão sendo negligenciados e subnotificados, pelo fato de a pessoa não identificar que está precisando de ajuda ou por não saber como pedir auxílio.
Os médicos-veterinários são profissionais cuidadores, bem como profissionais da saúde, e lidam com muitas demandas emocionais em sua rotina. Majoritariamente, não recebem nenhum preparo ao longo de sua formação para saber lidar com essas demandas. Esse despreparo acaba aumentando a probabilidade de sofrerem intenso estresse laboral. A proposta da Ekôa Vet é auxiliar esses profissionais, para que tenham uma rotina de trabalho menos estressante, priorizando sua saúde mental, física e social.
Na Medicina Veterinária, vemos algumas dinâmicas e fatores de estresse que podem afetar de alguma forma a saúde mental desses profissionais, porém, cada fator isoladamente não é causador de grande prejuízo na qualidade de vida da pessoa. É preciso considerá-los em conjunto e levando em consideração a frequência da ocorrência dos episódios estressores, que podem se tornar um fator de risco significativo. Por isso, a análise dessas situações é sempre válida.
Entre os maiores desafios na rotina do profissional é possível incluir: realização da eutanásia, comunicação de má notícia, lidar com o processo de luto e a perda do paciente, lidar com o tutor do animal, conflitos entre a equipe, desvalorização profissional, gerenciar eventos adversos, plantões frequentes, dificuldade de equilibrar a vida profissional com a pessoal e sobrecarga de trabalho.
Além disso, há a possibilidade de ocorrer prejuízos na saúde mental devido a episódios de privação de sono e exaustão, além do frequente medo de cometer erros. Se isso ocorrer, há o que chamamos de estresse laboral, que prejudica a saúde física e mental desses profissionais. Em razão da falta do reconhecimento profissional, de não conseguir se desenvolver na carreira, juntamente com a baixa remuneração e a ideia de que trabalham unicamente “por amor”, tornam a profissão propensa a problemas comportamentais referentes a estresse, ansiedade e ao esgotamento mental (BARWALDT, et al. 2019).
Vale destacar que existem diversas dificuldades para auxiliar a mudança da realidade prática dos médicos-veterinários, muitas das quais fogem do controle do indivíduo e que acabam comprometendo a saúde mental. Os sentimentos de frustração, desamparo e solidão podem aparecer de forma intensa, e até mesmo a vontade de desistir da carreira pode passar pela cabeça. Quando isso ocorre, contar com uma rede de apoio é fundamental, bem como buscar por ajuda profissional especializada.
A autorresponsabilidade pela saúde mental do próprio profissional é um fator que merece ser mencionado, sem que se ignore todo o contexto que já foi abordado. Com frequência, alguns reclamam que os tutores não respeitam seus horários e que colegas não respeitam seu descanso. Às vezes, exigir respeito pode ser difícil, uma vez que é comum esquecer-se que quem precisa delimitar esse espaço é o próprio indivíduo, ao estabelecer quais são seus limites e se posicionar para mantê-los e sustentá-los. Para isso, não é necessário ter uma postura ríspida ou grosseira, ou seja, é possível manter os limites com cordialidade e comunicar o que precisa de forma assertiva, o que é fundamental para que o profissional não se sobrecarregue, por exemplo.
É importante que o médico-veterinário perceba quais os pontos possíveis de mudança, o que está sob seu controle, ou seja, o que ele mesmo pode fazer pela sua saúde mental e qualidade de vida. As práticas de autocuidado são o caminho.
Burnout
Contudo, nota-se que a falta de conscientização e o estigma continuam sendo alguns dos principais obstáculos para que os indivíduos busquem por ajuda, e isso não é diferente na Medicina Veterinária. Por essa razão, fica evidente a necessidade de refletirmos sobre esses tópicos no contexto de saúde mental na profissão. Uma das taxas que mais se destaca é a da síndrome de burnout em médicos-veterinários.
A síndrome de burnout é um estado de sofrimento psíquico que está associado ao estresse crônico no ambiente de trabalho, podendo, assim, prejudicar a qualidade de vida tanto profissional quanto pessoal do indivíduo. O burnout já é compreendido como um problema de saúde pública e, em 2022, foi incluído na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS) como doença ocupacional. Quando a pessoa está com a síndrome pode apresentar fadiga intensa, distúrbios do sono (como sonolência ou insônia), raiva, depressão, sentimentos de fracasso e insuficiência, distanciamento emocional e frustração profissional.
Há três fatores principais que envolvem o burnout. O primeiro fator diz respeito à exaustão emocional, ou seja, a uma sensação de esgotamento, frustração e tensão, associada a baixa energia e prazer no trabalho. O segundo se refere à despersonalização, que se entende pelo desenvolvimento de uma instabilidade e dificuldade em expressar emoções e sentimentos, gerando maior complexidade em lidar com colegas e clientes, tratando-os de forma desumanizada. E o terceiro fator corresponde à baixa realização profissional, que é a tendência de o profissional se avaliar de forma negativa, deixando-o cada vez mais insatisfeito. Sabendo desses fatores, a pessoa pode prestar mais atenção aos próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos e buscar auxílio profissional especializado.
Para prevenir o burnout é necessário encontrar estratégias que diminuam os agentes estressantes e a pressão no trabalho. Devemos investir em fatores de proteção, ou seja, naqueles que contribuem para prevenir ou tratar uma síndrome ou doença. Isso inclui desde atividades mais práticas, como regular a alimentação e o sono, praticar atividade física e cuidar da saúde mental, até colocar metas e objetivos na vida profissional e pessoal, além de acrescentar à rotina atividades de lazer que não estejam relacionadas ao trabalho.
Ainda não temos dados estatísticos atuais e exatos sobre a realidade dos médicos-veterinários brasileiros, porém podemos levantar algumas suposições, a partir da realidade de outros países, como é o caso de alguns estudos realizados nos Estados Unidos em 2017, 2019 e 2020 pela empresa MSD Saúde Animal, em conjunto com a Associação Americana de Medicina Veterinária, e Brakke Consulting. Eles ressaltaram as dificuldades vivenciadas pelo médico-veterinário e as altas taxas de doenças mentais desses profissionais, bem como apontaram que eles estão sob alto risco de estresse laboral, esgotamento profissional e seu bem-estar psicológico está comprometido, além de manifestarem maiores níveis de síndrome de burnout, quando comparados aos médicos da medicina humana (MERCK ANIMAL HEALTH, 2020; VOLK, 2018; 2020)
Para haver maior valorização, conscientização e reconhecimento da Medicina Veterinária e da saúde mental dos profissionais que trabalham na área, é imprescindível que ocorra uma compreensão de todos os fenômenos, desafios e demandas que envolvem o assunto de cada país, levando em consideração sua cultura e cada contexto. Nesse sentido, foi realizada uma pesquisa no Brasil, com o objetivo de investigar a saúde mental e o bem-estar dos profissionais brasileiros, a qual foi orientada pela presidente da Ekôa Vet, a psicóloga e professora MSc. Bianca Gresele, em parceria com outras associações do Brasil. Os resultados serão divulgados em breve.
Além disso, já estão sendo realizadas outros estudos aqui no Brasil, como a pesquisa de doutorado própria Bianca, que investiga essa temática, visando verificar quais são as especificidades da nossa realidade e como estão a saúde mental e qualidade de vida na da Medicina Veterinária. A partir dos resultados, será possível desenvolver estratégias de intervenção que serão mais assertivas e embasadas, as quais precisarão prezar pela rotina de autocuidado desses profissionais.
O autocuidado é fundamental para o bem-estar físico e psicológico, além de ser compreendido como uma competência e comportamento que o sujeito adota no sentido de promover a sua saúde integral, enfrentando, paralelamente, determinadas condições de desgaste associadas a fatores estressores da rotina pessoal e da vida profissional.
Inicialmente, é necessário perder o pudor de praticar o autocuidado. Infelizmente, vive-se em uma época em que isso tende a ser visto como algo desnecessário e, por vezes, como sinônimo de fraqueza e/ou preguiça. Porém, quando essa barreira é superada, o profissional consegue colher ótimos benefícios, tanto no âmbito pessoal quanto profissional.
Por fim, ressalta-se que é também papel e responsabilidade de empresas, associações, conselhos e todas as entidades da área Veterinária preocupar-se com essa temática e contribuir para que melhorias sejam possíveis e alcançadas cada vez mais! #vetvocenaoestasozinho
Referências
BARWALDT, E. T., et al. Reflexos da sociedade e a síndrome de burnout na medicina veterinária: revisão de literatura. Brazilian Journal of health Review (Online) [s.l.]. v.3, n. 1, p. 2-14, 2020. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/5846#:~:text=Al%C3%A9m%20disso%2C%20diversos%20estudos%20em,repercuss%C3%A3o%20negativa%20na%20vida%20pessoal. Acesso em: 02/03/2023.
MERCK, A. H. Executive summary of the Merck Animal Health Veterinary Wellbeing Study II. JAVMA (Online). [s.l]. v. 256, n. 11, p. 1237-1244. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/341795204_Executive_summary_of_the_Merck_Animal_Health_Veterinarian_Wellbeing_Study_II. Acesso em: 02/03/2023.
MOFFETT, J. E., e BARTRAM, D. J. Veterinary Students' Perspectives on Resilience and Resilience-Building Strategies. J Vet Med Educ (Impresso). [s.l.]. v. 44, n. 1., p. 116-124, 2017. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28206832/. Acesso em: 02/03/2023.
SMITH, A. M. Ireland’s Veterinary Professionals: An Assessment of Compassion Fatigue, Stress and SelfCare Participation. Dublin, 2020. 71 p. Tese – Department of Psychology. Dublin Business School. Disponível em: https://esource.dbs.ie/handle/10788/4008. Acesso em: 02/03/2023.
VOLK, J. O. et al. Executive summary of the Merck Animal Health Veterinary Wellbeing Study II. JAVMA (Online). [s.l]. v. 256, n. 11, p. 1237-1244. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/341795204_Executive_summary_of_the_Merck_Animal_Health_Veterinarian_Wellbeing_Study_II. Acesso em: 02/03/2023.
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Associação Brasileira em prol da Saúde Mental na Medicina Veterinária.